10/22/2016 0 Comments kintsugi*Uma vez, o JM, devia ter quatro anos, partiu uma chávena. Uma chávena de café que fazia coleção com outras três. Partiu-lhe a asa. Eu devo ter feito a minha cara trinta e três. Mas, num esforço de aceitação e paciência — as coisas são o que são — consegui articular, um pouco a custo, um “não tem mal, temos tantas chávenas, deixa que a mãe deita fora para não te magoares com os cacos”e ele, agarrado às duas partes separadas da dita, exclamou, dorido, subitamente o coração dele partido também:
— Não! não, não.Vamos colar, tenho a certeza que conseguimos colar. E ficamos com ela. Dá para usar na mesma e eu gosto dela assim. Somos imperfeitos. Somos cheios de defeitos. De cicatrizes, marcas na pele que, às vezes, falam por nós. Só quem tem a força da humildade consegue ser melhor. Só quem consegue olhar-se sem filtros, sem a lupa da crítica dura ou o telescópio do ego vaidoso está bem consigo e consegue estar bem com os outros. As nossas vulnerabilidades não nos tiram valor. Antes nos acrescentam grandeza. Saberemos aceitar as nossas fraquezas sem as qualificar como forças disfarçadas? Aceitar sem julgamento e, ainda assim, querer ser melhor todos os dias? Saberemos aceitar-nos uns aos outros, perdoar, ter compaixão por nós e pelos outros, sem almejar a ser um vaso sem qualquer defeito? Saberemos cuidar de quem se parte, ver a beleza nas diferenças ou perdoar as “falhas” — as nossas e as dos outros? Como tratamos quem é diferente ou quem teve de colar os seus cacos? Como olhamos para os nosso velhos? Como olhamos para quem tem alterações físicas à dita “normalidade”? Como olhamos para as nossas crianças: como tendo direito à diferença ou tendo que pertencer a um padrão sob pena de terem uma “doença”, um “problema”? E seremos assim tão exigentes com as qualidades emocionais das pessoas: valorizamos quem é honesto, pacífico, generoso, compassivo, altruísta, autêntico, terno, íntegro? E saberemos deixar entrar a luz por cada rasgão na nossa pele? ( a nossa chávena nunca foi, afinal, colada. Assumimos a falta da asa — ela também não queria voar. Vive bem no meio das outras e serve-me o melhor café que tomo. )❧ *kintsugi é um arte milenar, japonesa, de restauro, em que se utiliza “uma mistura de laca e pó de ouro. As peças que recebem esta reparação são mais valorizadas que as que estão intactas. Isso porque sua estética trabalha mais com questões como a transitoriedade e a impermanência do que com a beleza propriamente dita.”
0 Comments
|
autor+artigos
December 2021
temasAll Comunicação Não Violenta Crianças Conscientes Ensino Consciente Inspiração Mãedfulness Parentalidadeconsciente Parentalidade Consciente Podcast |
o suave milagre | mariana bacelar