1/7/2021 0 Comments 01. isabela preguiça inusitada, que o acordar na manhã ainda por nascer lhe trouxe, fê-la duvidar da sua habitual determinação. acordar cedo, beber o seu chá ⎨gengibre no inverno, camomila no verão⎬ e tomar conta do dia antes que ele tomasse conta dela era o seu passaporte certo para que as rotinas e tarefas, os compromissos e depois o merecido descanso acontecessem sem sobressaltos. sempre fora assim, desde menina: escola, viola e a ginástica rítmica, a pautarem a cadência certa dos dias normais, a previsibilidade e a organização a darem-lhe tempo de sobra e algum espaço livre para os sonhos. às vezes, nestes últimos tempos, voltara a lembrar-se deles, dos sonhos tontos de quando tinha doze, dezasseis, dezoito: o teatro, a decoração, a moda. e foram eles, em vez do sentido do dever, que a tiraram da alvura da cama quente naquele frio inusitado na latitude marítima que escolhera para viver, mesmo sendo inverno no hemisfério norte. Viu a fina camada de geada na relva do seu pequeno jardim, quando afastou a cortina, a manhã quase a romper agora. pôs a tocar a música que o André lhe tinha sugerido num WhatsApp, na noite anterior ⎨bem sabia, um tens de ouvir isto com um link também pode querer dizer gosto de ti⎬ no spotify e ainda com preguiça entrou no duche. permitiu-se a água bem mais quente do que habitual ⎨estraga a pele e deixa o cabelo baço - a voz da avó Zé, regrava, por norma, a temperatura dos seus banhos, sem piedade⎬, o Goofrey a vir dizer finalmente bom dia, no miar terno de quem quer mimo e Isabel, nos gestos automáticos, ainda que delicados, de todas as manhãs: a roupa escolhida na noite anterior, a maquilhagem discreta nos tons e técnicas aprendidas ao longo dos anos. não, não tinha saudades dessa miúda um pouco insegura, um pouco obstinada que fora. só saudades de saber que tinha o tempo todo do mundo à sua frente, de ter a certeza que as possibilidades eram infinitas, que podia fazer tudo desde que se dedicasse. A inocência e a vontade juntas, num projeto de cinema do liceu, num curso de verão de pintura, outro de costura, num estágio profissional algo arriscado, numa agência de comunicação, mesmo depois de ter escolhido o curso de futuro certo que o pai, voz segura e colo terno, lhe aconselhara. a verdade é que o seu coração lhe pedia estabilidade, sempre pedira. até os amores os preferia serenos, desses que pouco pedem - uma mão dada na rebentação, um encontro de olhares entre livros lidos no silêncio, uma pequena viagem planeada, uma casa partilhada e cuidada, um projeto de vida a longo prazo e a sua independência assegurada. a mãe dizia-lhe que ela nascera com uma alma antiga, ao que a sua amiga Ana retorquia, sarcástica: ó mulher, homens desses à antiga, já não se fazem! moderniza lá a alma ou ficas sozinha para sempre! ela respondia-lhe o lugar comum, sem pausas para dúvidas: mais-vale-só-que-mal-acompanhada e no meio de um brinde com o tinto favorito das duas, assegurava que namoricos frívolos não eram para ela, tinha mais o que fazer. tinha o ioga e o gato, tinha o trabalho exigente e a casa, que gostava de manter organizada, limpa e mimada por si própria como sempre fizera, ainda a companhia boa do André, se bem que agora em guarda partilhada mas que lhe permitira ter voltado ao voluntariado, enfim uma #vidamuitoocupadagraçasadeus. a Ana ria-se e apertava-lhe na cintura onde faz doer: e tens-me a mim, não, ó tontinha? sim, não se podia queixar, tinha uma vida boa, cómoda e tranquila, preenchida com tudo que sempre sentira ser importante. nunca lhe faltara sentido prático, por isso as desilusões e durezas do percurso acomodara-as como tinha de ser, no seu bom coração e, entre dois alongamentos de alma, seguira caminho. um amor de tantos anos que lhe dera um filho maravilhoso, nunca podia ser colocado na lista do deve, mesmo que tenha ficado aquém do #eforamfelizesparasempre. um filho adolescente e um ex-marido que não lhe davam dores de cabeça, antes estavam lá para ela caso precisasse era sorte, não queixume. bom, também trabalho, sim, e desse orgulhava-se sempre. não era de baixar os braços, nem de deixar créditos por mãos alheias. com calma e empenho tudo se conseguia, e cabe-nos a nós construir uma vida tranquila, com as nossas atitudes e escolhas face ao que nos acontece - levava as premissas gravadas, talvez herdadas da mãe, talvez das freirinhas da escola primária, talvez do seu próprio adn capricorniano. houvera anos mais duros - mãe sozinha com pai a dias - não mentia a si própria nem desmerecia a sua capacidade de trabalho. sabia que a tinha, as marcas na alma e na pele da carga às vezes pesada demais, outras solitária demais e da responsabilidade que não delegava confirmavam a versão adulta e pragmática da vida: o caminho faz-se e tu és capaz de o fazer sozinha. (será que estava a duvidar disso?) enfrentou, enfim, os graus negativos e húmidos da sua rua, pouco passava das oito, as luvas e a pachemina cor de cereja a aconchegarem-na na travessia pelo ar frio até ao Bistrô da Eva, onde tomava o seu pequeno almoço, com as notícias da manhã a desfilarem nas redes sociais, os aromas do bolo do dia já no forno e do café de cafeteira fresquíssimo a espalharem-se, qual droga boa, pela atmosfera aquecida. havia sol na mesa junto às aromáticas e não hesitou - aquela mesa era sua, e nesse momento, soube que também era seu o direito de ver o tempo passar, sem agenda que o dominasse. os pensamentos tomavam conta do seu coração, sem que ela os aprovasse, mas era isso que diziam: que talvez fosse tempo de, sem hesitar, agarrar um ou outro sonho que ficara pendurado no cabide do que falta. porque faltava algo, sim. e não era nenhum falhanço assumi-lo. era desconfortável, era terrritório duro de atravessar, como aquele inverno, mas com o aconchego certo não era impossível. talvez pudesse arriscar um pouco e planear menos. talvez não passasse de hoje inscrever-se no curso de decoração de interiores que lhe aparecia a toda a hora no feed do facebook, talvez pudesse planear um fim de semana em Veneza, que não conhecia. a Eva, mulher forte e de sorriso grande, abeirou-se dela, os olhos brilhantes de quem não vive sem paixão: -Não te sentas, hoje, querida Isa? Ia sentar-se sim, na mesa cheia de sol junto às aromáticas que a convidava a sossegar, a fazer as coisas de forma um bocadinho diferente, a acomodar a preguiça na sua agenda imaculada, a riscar uma ou outra obrigação e a pagar para ver que o mundo não desabaria. na playlist do Bistrô , como sinal das energias certas do cosmos, começou a tocar a música do Kris Allen que ouvira de manhã, tão bonita. Venice. sim, talvez estivesse também na hora de aceitar o convite para jantar do Rodrigo, lá do escritório. quem sabe partilhavam gostos musicais? quem sabe ele alinhava num fim de semana juntos a Veneza? - ❥ mariana| janeiro ´21
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